terça-feira, 2 de novembro de 2010

Traço

Desculpa,
eu nem me permiti ler o que ela escreveu. Tão logo li a palavra abandono, achei melhor já escrever a presente carta sem me contaminar com aquilo vindo dela. Ainda porque, eu também estou tomado pelo abandono. Tomado pela necessidade que os pais têm em trabalhar para nos sustentar. Sustentar as crianças, que assim seja. Eu quero dizer, em relação aos móveis a gente dá um jeito, lustra todos eles, passa óleo, dispõe novos livros sobre as prateleiras fazendo com que emudeçam embrigadas por linhas. Com os cacos a gente junta num canto e faz da erosão obra de arte. A gente finge para o próximo vizinho que (não) entrará na nossa casa, que se trata de alguma coisa comprada no MoMA, eles se impressionariam. A gente compra garrafa de plástico. A gente tenta cozinhar o feijão. Mas a questão é que com a gente, de fato, não parece ter mais solução. Para onde vocês foram que não foi possível sequer deixar um aviso. Que eu tivesse acordado com um post-it escrito deus colado sobre o televisor. Que eu tivesse acordado com o requeijão fora da geladeira sobre a mesa, que eu tivesse acordado com a lâmpada queimada dando curto-circuito... Com tudo isso teria sido possível amenizar a vossa fuga, porque eu me perderia - mais uma vez - tentando esclarecer suas desculpas. Eu teria passado essas semanas fingindo haver um mistério sitiado dentro de casa. Mas não. A outra disse com precisão. Trata-se de abandono: e nesse caso, talvez não teremos mais força para controlar os gestos provocados pela necessidade que temos de ser amado.

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