quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
Pacto expresso
1. Patrícia vai passear com o Max, filmar o passeio e editar um vídeo sem trilha sonora.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
Desabafo II
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
desabafo.
Querido diário,
Vou resolver isso de outra forma. Na presença de outras pessoas, em outro tempo. O peso argentino está barato e me disseram que lá tem uma balada chamada "el teatro". Vou interpretar uma noite dessas. Da ordem dos super conselhos: você deveria andar mais de patins. Nua, completamente nua. A casa está uma bagunça. Precisamos.
Fotógrafo: Ryan McGinley
http://www.ryanmcginley.com
Breve apresentação do projeto:
O projeto fala de um processo interior gerado por um estado violentado e não na exteriorização dele nem de seu motivador. Tocando em questões pertinentes a vida contemporânea, “Violenta” reflete a imposição que nos é feita na direção do silêncio. Apesar de sermos vítimas permanentes, nos omitimos em nosso direito de voz e veto. Caminhamos camuflando nossas feridas e apesar de procurarmos superar esta sensação, continuamos distantes da paz.
A estrutura do projeto abre espaço pra diferentes visões sobre o mesmo tema. Serão extraídos os pontos de vista dos atores, dos VJ`s e mais tarde, o do público, que toma o lugar dos atores. Neste momento, o público assume o lugar de observador da violência retratada neste ambiente, entre quatro paredes, através da projeção dos vídeos produzidos. Violenta se completa em sua última etapa, pois concretiza a impossibilidade de fuga, sensação que a violência nos transmite em suas mais variadas derivações. Estamos imersos em uma situação para a qual não se vê saída. Violenta propõe uma simulação destes sentimentos através da construção de imagens demonstrativas de nosso estado violentado. As projeções funcionam como espelho desta situação. São confissões e os participantes, por sua vez, testemunhas.
Violenta se propõe a servir como reflexão para buscar uma saída.
Para entrar em Violenta é preciso estar aberto ao diálogo. As nossas feridas sangram, mas a dor que lateja dentro de nós é da incompreensão.
domingo, 27 de dezembro de 2009
Eu não teria feito...
Se o tempo fosse outro ele não seria tempo, ele seria ilusão. É tão difícil assim acordar e se olhar no espelho e reconhecer o vazio? Vazio é bom. Nele a gente pode jogar com tintas. Pisa na direção oposta, por favor. Já que tudo corre contra você, volta, vai vencendo muro e murro e encontra alguma coisa sua que possa valer. Eu não disse feio ou bonito. Também não estou te pedindo sentido, só te peço que sintas. Da próxima vez, não relute, deite em meu colo se jogue em meus braços e nem sequer me deixe implorar. Eu vou gostar. Você vai gostar. Nós vamos gozar [o momento] e será demais. Será o fim.
Eu poderia te dizer mil coisas que agora lhe trariam felicidade. Eu te veria sorrir. E isso me entristeceria, porque felicidade não é muito diferente de choro ou do silêncio. Tudo é pedaço, parte, deste ou de outro: momento.
Da ordem dos super conselhos: CALA ESSA BOCA DE TANTO GRITAR!
Ninguém te ouve? Eu te ouço. Eu estou aqui, me dispus a ler a merda que você escreve, a ouvir o que você lamenta e agora? E agora, porra? Você vai me responder ou vai reproduzir uma cadeia para a solidão que só parece ter fim em você?
O momento chegou. Não se sinta mal. Mas você sequer consegue dizer o que quer dizer. Você está escrevendo errado. Com palavras tortas, métrica errada. Com erros de português, inglês, italiano e francês. Você precisa se cuidar, precisa mesmo regar algo em sua casa. Pare de regar os cabelos e vá regar a cama. Crie nela um mofo imenso que lhe possa lançar para o quintal. E lá se hospede. Há de ser melhor.
Dormir sob o céu. Dormir desprotegido. Dormir junto com os bichos, junto com o mundo, junto com o sinistro, o estranho [unheimlich].
é incrível pensar que o unheimlich (ou o estranho) está tão dentro do universo do heimlich (ou o caseiro), ao ponto que se pode dizer heimlich para dizer unheimlich. Isso pode soar estranho, mas faz todo sentido. Tudo o que é caseiro para quem está de fora desse espaço reservado, é estranho e, por que não, perigoso. E, para quem está seguroem casa, tudo o que não pertence aos seus limites domésticos, é arriscado, não dá tanto pé. (saiba mais neste texto horroroso - assim como o seu - que eu achei no google)
Você pode ser outra. Eu agora estou sendo. Você sabe se tudo o que eu escrevo eu concordo? Você sabe o que eu sinto, sabe o que eu quero? Eu também posso te dizer sem saber. Eu também posso e as merdas são merdas, elas se reconhecem, não podemos tão diferentemente assim ser. É pessoal. É ficção. É tudo desculpa para a nossa condição.
Olha, pára de vez com esse papo. O amor é mais forte. Mas precisa do teu corpo para existir. caralho! Se for o caso, faz que nem sua amiga, se mate, e acabarás com esse amor todo que te faz assim, mole. Lazy. Lembra daquela tarde, quando você me disse, Gentileza gera gentileza que gera gente lesa, eu te completei.
Eu estava certo. Você não é filha da puta, é filha da Gentileza.
Ah, por favor. A ladainha é sua. Quem ouve Maria Gadú é você. Então sofre sozinha ou reconheça que o mundo vai te sofrer. Porque o mundo vai, meu amor, mas ele vai mesmo. O mundo vai te sofrer, te estuprar, cabar c'ocê. Você não fez nada. Mesmo. O seu problema é que você nunca fez.
E agora, Joseca? Eis que Drummond te pergunta: o que hacer?
O euro está caro demais para fugir ao cartão postal. Vais ter que resolver isso no Centro. Ou na esquina de casa.
\\\\
sábado, 26 de dezembro de 2009
Eu teria feito...
Mas eu não fiz nada. E agora peso no que eu teria feito se eu fosse verdade.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
Eu teria dito...
O amor é alguma coisa que inventamos para amenizar a solidão. É mesmo alguma coisa, porque aceita ser inclusive a indefinição. Pode ser erro, acerto, acaso, passado, pode ser tempo, vento, beijo, desejo. Desejo. Acho que precisamos erguê-lo. Colocar o desejo no alto e instaurar a disputa: amor versus desejo. Desejo vence. Tem que vencer. Muitas vezes falamos que é amor aquilo que é fome, que é puro prazer. Pura sede dos toques, desejo sede do corpo gritando pelo choque! Choque!
se já não soubesse que com amor tem que ir devagar. Quem inventa essas coisas? Todos os amigos ao redor dizendo, vai com calma, com calma por quê? Se dentro de mim as coisas se avassalam e se atropelam e nem me deixam sequer entender? Pede-se calma ao desejo? Pede-se calma ao corpo que tem fome, sede, ao corpo carente, ao desapego?
Ele entrei dentro de casa. Estavam as duas no auge de sua prosa romântica. Se conversavam sobre a novela, sobre como crescem as crianças, eu não sei. Cruzei a sala e vinha pingando a chuva que me pegara desprevinido. Elas disseram, você vai molhar o carpete. Você vai pôr dentro de casa um rio. Eu me senti tão mal, confesso. E se eu ali parasse, todo molhado, e dissesse: quero ser rio. O que elas fariam?
Não soube como proceder. Me disseram de água, de rio, de molhar, quando sequer perceberam que aquilo tudo era eu. Que aquilo tudo eu poderia ser. Eu poderia ser. Eu poderia. Eu teria dito, vocês não percebem? O que vocês comeram, que cheiro é esse, o que aconteceu com o peixe, cadê sua comida? Quando eu vi uma cadeira caída no meio da sala, de ponta cabeça, eu soube imediatamente o que falar: e saí da sala, voltando à rua em chuva.
Na rua. Eu relutei mas sentei eu sentei na calçada encharcada. Eu fiquei parado, a cabeça pesando a cada gota que entre meus cabelos se instalavam. Eu abri os olhos, mirando o chão e pensei: as coisas todas correm, elas seguem toda um rumo. Eu não. Um rumo a seguir. Eu não. Um rumo. Ou nada. Um muro. Ou murro. Alguma coisa que pudesse me indicar um caminho, um fio, exato, a seguir.
Você cruzou a rua. Eu ergui a cabeça. Achei que tinha sido atraído por você que eu desconhecia. A luz do poste, sob a chuva, foi contornando o seu rosto através da rua em movimento. Quando nos vimos, você já não era quem eu queria que você fosse, como o visto naquele primeiro momento. Como o visto naquele primeiro momento em que eu não te vi de verdade, mas apenas a silhueta, apenas um corpo vago para meu desejo ali em mim despejado. Não temos jeito, pensei.
Sou um ser desesperado. E voltei para casa, resfriado.
Breve conquista de um amor talhado
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Não tão breve assim...
Quando ele entrou na sala, as duas estavam costurando. Ele queria atenção, elas queriam silêncio. Lá em casa, quando elas resolvem costurar, só pode haver na sala o barulho da costura. Nem grilo ousa grilar. Ninguém fala. A televisão cala a boca. Quando ele entrei na sala, elas franziram a testa. Franziram a linha preta. Ele percebi. Mas queria atenção, então adentrou até o centro da sala. E foi quando elas pararam de pisar no pedal da máquina. E passaram a pisoteá-lo.
Que ele queria entender, queria conversar, estava disposto a sair perdendo, mas queria ao menos tentar ali compreender, o porquê da mudança dos móveis. Mudamos os móveis porque mudar é necessário. Ah, muito bom, isso explica muita coisa. Ele disse sem provocar mas já provocando. Mudamos porque mudar é necessário e quem determina a necessidade, ele perguntei. É o estômago, ele (o estômago) respondeu.
A mesa estava posta desde cedo. Posta no canto da sala. O queijo destampado. As cadeiras de madeira sem os estofados (que estavam todos ao mesmo tempo sendo costurados). Cadeira sem estofado vira cadeira-impraticável. Ninguém tomou café almoçou comeu nada. Enquanto as cadeiras tinham seus estofados costurados, ninguém comeu nada.
Ele fica chato quando está com fome. Elas deveriam saber. Já deveriam saber o passado das mamadeiras atrasadas. Mas dentro de casa às vezes alguma coisa precisa acontecer para lembrarmos quantos somos, como fomos, o que fazemos, porque existimos, porque ela chorava ontem dentro do banheiro. A pia ligada escorrendo uma lágrima maior, infinita. A pia ligada era capaz de sobrepor a outra, aquele rio sem fim tão maior que de dentro dela ia se perder no chão. Por onde eu passei e gritei depois, Porra, deixou água cair no chão. Você é porca!
Ela era triste. Só isso.
Não era porca. Era triste. E ser triste dá essa sensação de sujeira. Porque pior que ser triste é ser triste sozinho, em escondido. Tem que guardar no rosto o choro chorado. Esconder no rosto o choro escorrido.
Quando eu tentei pegar um estofo para a cadeira. Ela costurou minha mão na sua e disse, Espera! Mas eu já estava esperando desde o dia do meu nascimento por alguma coisa. Ela me empurrou contra a parede, eu quase apaguei com as costas a luz fria da sala. Ela puxou a linha preta, engrossou a voz e disse, Me ajuda! Eu não entendi, não sabia se era para costurar, se era para comprar mais linha. Na dúvida, optei por ficar encostado na parede e esperar a almofada ser cosida.
Enquanto isso, dentro, o estômago temia fazer barulho demais. Mais barulho do que as máquinas costuravam. Mais barulho do que a dor de existir. Naquele instante. Naquela nossa casa. Mais uma vez. Sempre até a morte.
Breve conclusão.
Beatriz Bracher em "ANTONIO"
sábado, 12 de dezembro de 2009
sábado, 5 de dezembro de 2009
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
fica AI
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Fica aí porque...
Lesões incompatíveis com a vida de Angélica Liddell
Não quero ter filhos.
Não quero ir mais longe.
Sou uma epidemia de ressentimento.
Não quero ter filhos.
É a minha maneira de protestar. O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo renuncia à fertilidade.
O meu corpo é o meu protesto contra a sociedade, contra a injustiça, contra o linchamento, contra a guerra.
O meu corpo é a crítica e o compromisso com a dor humana.
Quero que o meu corpo seja estéril como o meu sofrimento.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é o meu pessimismo. Graças ao pessimismo posso fazer-me perguntas. Alguém tem de ficar em metade dos homens fazendo-se perguntas, alguém tem de ficar em metade da esperança fazendo-se perguntas. Alguém tem de ficar como um idiota. Alguém tem de ficar como excremento e fracassar definitivamente. A ausência de filhos ajuda-me a ser excremento e a fracassar. Os adultos saltam por cima do meu ventre agitando os seus filhos como bandeiras como se o mal tivesse desaparecido do mundo, como se a inteligência tivesse finalmente triunfado sobre o mundo, como se fossem insígnias de um mundo melhor. Não confio num futuro melhor. As famílias comportam-se com soberba, pensando que a sua prole vai ser diferente, que os seus filhos nunca irão trair como nós fomos traídos, que os seus filhos nunca danarão nem serão danados, que os reveses da vida sem dúvida serão menores e que os seus filhos jamais serão culpados seja do que for.
O meu corpo é o meu protesto contra as grandes esperanças dos pais, contra as grandes pretensões dos pais.
Não quero passar por esse estado de estupidez transitória.
Não quero que o meu ressentimento se interrompa.
Não quero deixar de pensar na injustiça.
Não seria justo para os excluídos que deixasse de pensar na injustiça, que deixasse de condenar os privilegiados.
Porém, não conheci nenhuma criança que se convertesse num bom adulto. As crianças não se convertem em bons adultos. Eu não sou uma boa adulta. A bondade não existe. Sou má, muito má.
Talvez essa seja a razão por que não quero ser mãe.
Talvez a nós, mulheres más, nos aconteça isso, não queremos ser mães.
Nós, as mulheres más, sem instinto maternal, pagamos o tributo de morrer sozinhas, podres, sem alegria, em frente ao televisor, em frente ao espanto, secas, rodeadas de moscas de diferentes tamanhos.
A nós, mulheres más, só nos pode acontecer a morte.
Acho bem.
Fui criança. Mas não me tornei uma boa adulta.
O papel do homem no mundo é absurdo. Navegamos de tara em tara
Quando me imagino a parir apenas consigo ver, assomando entre as minhas pernas, a cabeça grotesca de um monstro já fatigado pela imundície do universo, pelo inefável, pela mesquinhez.
O meu corpo é o meu protesto.
Não quero trazer nada ao mundo excepto o meu profundo horror pelo mundo. Depois dos desastres do século XX apenas posso sentir horror. Depois de tamanha exibição do mal, o homem já não pode redimir-se. Quem pode voltar a amar os homens? Quem pode voltar a cantar em louvor dos homens? Alguém disse que depois dos horrores do século XX não era possível continuar a escrever. A palavra tinha-se tornado absurda, insuficiente. Os filhos são como a palavra, insuficientes. Seria bom para a minha mente aceitar a insuficiência da palavra e do homem. Mas dentro de mim há um qualquer crocodilo que me impede de aceitar isso. Cada vez suporto menos a injustiça, cada vez suporto menos a maldade. O mundo está alicerçado na injustiça e no mal.
Apenas consigo protestar.
O meu corpo é o meu protesto.
Quero morrer sem ninguém, sem deixar nada para trás. É a minha maneira de me unir aos que foram exterminados, aos que sofreram sem limite.
Não quero esperança.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é um exemplo para suicidas, um exemplo para assassinos, um exemplo para todos os que se desprezam a si próprios.
Meu maldito corpo.
Minha decisão anormal.
Chega uma altura em que a sociedade se excita, se impacienta e procria, procria porque sim, procria. Que motivos tem?
Pergunto-me: que motivos tem?
Porém, a minha decisão é anormal.
Perdão pela violência.
A minha violência verbal é a minha luta contra a violência real.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu protesto contra os vestidos pré-mãmã.
O meu corpo, voluntariamente estéril, é o meu inconformismo.
O meu corpo é a minha falta de adaptação.
As grandes esperanças dos meus pais destruíram as minhas próprias esperanças.
O meu corpo é o meu protesto contra as grandes esperanças dos meus pais, contra as grandes e estúpidas esperanças do mundo.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é a minha acção.
A minha decisão anormal é a minha acção.
Em resumo, a minha vida é a minha acção.
Só quero ser filha.
Comigo termina a tirania do sangue.
Não quero constituir família.
Nunca acreditaria numa instituição que é fomentada, elogiada, aclamada, inclusivamente premiada pelo poder. Não confio em todos esses governantes que se fazem fotografar com as famílias.
A fotografia de família está sempre em cima das secretárias dos presidentes, em moldura de prata, a moldura é caríssima, a família merece a moldura mais cara, o presidente merece a família mais bonita, mais sorridente, mais feliz e mais cara. A família é o mais importante. A família é o mais importante. Sem família ninguém alcança o poder. O poder e a família, sempre unidos. Repugna-me.
As fotos de família lembram-me os arrepiantes cromos paradisíacos que os padres te mostram ao mesmo tempo que te cospem orações nas orelhas.
A família e o poder.
A família e a religião.
Não posso confiar numa coisa imposta pelo poder. Não posso confiar numa coisa imposta pela religião.
Nem que fosse apenas por esse motivo devíamos negar-nos a ter filhos.
Celine disse: “ Quando alguém ama os grandes da terra, está pronto a ser convertido em carne para canhão. Pelo afecto se começa. Os que estão no alto apenas conseguem pensar no povo por interesse ou por sadismo”
Concordo.
Também disse: “Vivam os loucos e os cobardes!”
Também concordo.
Não me sinto capaz de agradar aos poderosos, aos privilegiados. Se lhes agrado estou a alimentar a obesidade e o conformismo de uma sociedade idiota, delicodoce.
É necessário que haja alguém que não queira ter filhos. É necessário para desestabilizar as consciências. É uma forma de fazer justiça.
O meu corpo é o meu protesto.
É a minha forma de fazer justiça.
O meu corpo é o meu protesto.
Não quero ter filhos.
Quero ser pobre.
Não ter filhos é uma maneira de ser pobre.
Os pobres são essas pessoas cuja morte não interessa a ninguém.
Essa é a morte que eu desejo.
Não quero ter filhos.
É uma forma de ser um pouco mais pobre.
Às vezes penso que não depende de mim.
Estou possessa de uma raiva inidentificável que me obriga a enlamear-me continuamente na dor.
De onde vem essa raiva?
A quem pertence a vontade do enfermo?
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo protesta contra a minha geração.
A fraude da minha geração.
Criaram uma sociedade classista, orgulhosa, ambiciosa e brilhante
Com o suor das suas testas, brilhante.
Com o suor das suas testas, ambiciosa.
Com o suor das suas testas, orgulhosa.
Com o suor das suas testas, classista.
Apenas procuram a comodidade.
Imitam os pequenos ricos. Dizem o contrário, são muito progressistas, mas comportam-se como qualquer um da classe média.
Codiciosos, complacentes, comodistas, instalados.
Sim, reproduzem-se na comodidade.
E isso debilita as suas mentes.
As suas cabeças estão repletas de comodidade.
Pensam que as suas consciências são correctas, mas não o são. No fundo, a sua correcção é um tópico que lhes permite viver sem qualquer sentimento de culpa.
O meu corpo é o meu protesto.
Sou uma estúpida.
Sou aquela que se equivoca por pretender sentir-se perdedora e ridiculamente heróica. Acuso-me de petulância. Sou petulante por andar ao contrário do mundo. Ainda que talvez faça parte da sua inércia. Não gosto de pensar assim, mas a raiva obriga-me a isso.
Uma pobre ressentida com aspirações artísticas. Eis o que sou.
Não quero salvar-me.
Sou a pior. A pior.
Protesto com o meu corpo.
Sou um caixote de lixo cor-de-rosa.
A imundície da minha carne faz com que qualquer um que se aproxime se torne escrupuloso.
Estou consumida pela verdade.
A guerra envelhece-me
Observo a minha existência como se a minha existência fosse a de uma mosca.
Pertenço à fauna cadavérica.
Em que momento da decomposição apareço?
Há quantos dias está morto o cadáver?
O meu corpo é o protesto pelos cadáveres inocentes.
Não quero ter filhos.
Não quero mais funerais.
Quem é o responsável pela vontade de morrer de uma mulher?
A injustiça coloca espadas na cama da suicida.
Embora o meu coração tenha parado, o sangue continua a fluir pelo meu corpo para continuar a protestar.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é a minha acção.
O meu corpo é a minha obra de arte.
A minha decisão é a minha obra de arte.
Não ter filhos é a minha obra de arte.
Não fazendo filhos, faço arte.
O cheiro a café misturado com o cheiro a peixe faz-me vomitar.
Relaciono esse cheiro com a maternidade.
E ao mesmo tempo relaciono-o com a morte.
E penso: na família tudo acontece no escuro. Não suportaria nem mais uma grama de hipocrisia.
Porque na família amamos mas também somos obrigados a amar.
Este facto origina relações tenebrosas, sem bases, que desembocam em camuflagens dolorosas.
Na família tudo acontece na escuridão.
O meu corpo é o meu protesto
Protesto contra a ausência de paixões.
Protesto contra a fraqueza e a sensatez.
Protesto contra o uso do dinheiro.
As famílias recém-constituídas trabalham para poderem comprar arcas frigoríficas maiores, carros maiores, férias mais caras porém mais insípidas.
As famílias trabalham para não perderem nem uma grama do prestígio social.
As famílias trabalham para não perderem nem uma grama de segurança.
Protesto contra o prestígio social e protesto contra a segurança.
Aqui está o meu corpo protestando, sem filhos.
As famílias trabalham arduamente para parecerem ficarem como os ricos.
Aspiram ao bem-estar total.
Em nome dos seus filhos aspiram ao bem-estar total, quer dizer, ao supérfluo.
Perderam o sentido de bem-estar.
O meu corpo protesta contra o bem-estar.
As famílias trabalham arduamente.
Aspiram à calma total.
Protesto contra a calma.
O meu corpo protesta contra a calma.
O bem-estar, a segurança, a calma.
Tudo o que os alisa.
Nada de paixões. Nada de excessos.
Trabalham para pagar o ginásio.
Para pagar a protecção enquanto trabalham.
Enquanto trabalham para pagar a protecção e o seu eterno descanso.
E o seu eterno sacrifício.
Não posso identificar-me com eles.
Não posso identificar-me com um plano de pensões.
Não.
A minha vida é patética e adolescente.
Sou uma merda.
Mas não quero ser como eles.
Tanto faz. Não é possível fazer marcha atrás.
A minha geração move-se em direcção à estabilidade, ao plano de pensões, ao restaurante caro, ao carrinho cheio de compras, move-se em direcção a um consumo sem limites.
Por detrás das suas carteiras são uma massa flácida e sem forma.
Eu não sei para onde estou a ir.
Em qualquer caso, não ter filhos dá-me força. A minha decisão dá-me força.
A minha geração move-se tanto que não tem tempo para pensar.
Utilizam quatro tópicos para pensar e vão para a cama. Tão seguros, tão estáveis.
O meu corpo protesta contra a estabilidade.
Há demasiados funcionários.
Protesto contra os funcionários.
E os funcionários protestam porque o salário não chega para comprarem um carro mais caro, um queijo mais caro, um restaurante mais caro, uns calçõezinhos mais caros, uma merda mais cara. Protestam para mudar os azulejos das paredes do quarto de banho. Protestam por isso, porque precisam de encher o carrinho de compras até à insuportabilidade.
O meu corpo protesta contra os funcionários.
A economia determina as relações afectivas.
A economia determina as minhas acções.
O meu corpo é a minha acção.
Não tenho medo da pobreza.
A minha economia determina o meu protesto.
É impossível uma relação com aqueles que nunca tiveram na vida consciência de ruína e de pobreza.
Impossível.
A ausência de consciência de ruína e de pobreza defrauda-me completamente.
Por isso protesto. O meu corpo é o meu protesto.
A pobreza é tão indesejável como a mediania.
A raiva faz-me delirar.
Que fazer para evitar esta raiva aqui dentro?
Só protesto.
O meu corpo é o meu protesto
O meu corpo é a minha acção.
A minha vida é a minha acção.
Não quero ter filhos.
Porquê?
Talvez por raiva, esta raiva, aqui dentro.
Está sempre prestes a começar uma guerra.
O mundo é maravilhoso.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Da ordem do inevitável:
desler
não deixar de te olhar nos olhos, mas
deixar de olhar nos olhos aquilo que eles anseiam por ser
lidos
deixar de completar o princípio
deixar a pele magoada
por sobre a inscrição
"magoo-me facilmente"
deixar de ler o que opera diante de ti
e avançar mesmo assim
do tipo tenho dor,
mas você aguenta.
deixar de ler
e convertar a conversão via soco
via brutalidade
via vitória virtuosa da violência
desler
eu deslia a TV
nisso, eu desli VOCÊ
que diante da televisão ligada
deslia a minha atenção
e me requisitava sobre a cama
já por nós deslida
já por nós magoada
cama por nós substituída
deslida
despropositada
desfeita a cama
desfeita o nosso acordo
desfeita, naquela noite, a nossa estrada
...
o que você deslê
o que você deslia
o que é você é desleitura
em outras palavras
o que você apatiza?
ai, oi, ohs, vendaval.
ai, oi, ohs, vendaval. essa interjeição que diz tudo menos amor. essa interjeição que grita e consome e confunde precipício com princípio que confunde ardência com ardor. ai, ohs, oi, a dor?
cada um escreve de uma forma essa mesma experiência. esse mesmo estado. essa mesma impaciência. sabe? uns ficam mais tempo quietos, calados. outros escrevem, outros gritam, outros procriam a dor e fazem da dor novo salto. salto alto. salto aí. sobre isso, sobre ti, sobre mim, sobre os dois. ai, aí, feijão com arroz já não faz tanto sentido. aí, a fome da carne é de novo o princípio. e cá estamos nós outra vez diante do precipício...
rol das palavras inevitáveis (aquelas capazes de matar e salvar, at the same time)
1. fica! do verbo ficar no imperativo
...
domingo, 15 de novembro de 2009
FICA AI
Fica ai porque não adianta voltar. voltar não significa recomeçar se é isso que você espera. fica ai porque recomeçar não significa estar de volta. Fica ai! Fica ai porque eu acho que a gente não se entendeu ainda. Fica ai porque eu preciso me observar com mais calma antes de tentar recomeçar. Fica ai porque você é homem e eu sou mulher. Fica ai mais um pouquinho, porque se você chegar perto eu não sei o que pode acontecer. Fica ai, não vai buscar o controle. Olha, ele fica mais bonito entre os carros no meio da rua. Fica ai que eu preciso arrumar a CASA antes. Fica ai porque daí eu não não escuto sua voz e posso lembrar dela como eu quiser. Fica ai porque seu cheiro invade meu espaço. Fica ai porque eu não enchi balões suficientes. Fica ai porque não temos uma música ainda. Fica ai porque quando estamos perto achamos que já estamos próximos o suficiente. MENTIRA! Fica ai porque já tá todo mundo solto e se você chegar perto eu posso cair. Fica ai porque quando você vem sem avisar a surpresa é maior do que eu posso aquentar. Eu vou morrer. Fica ai mas volta antes que eu consiga escrever 5.000 caracteres. Fica ai mas quando vier vem correndo. Fica ai porque não sei ainda se sua força vai ser suficiente pra me segurar. Fica ai porque não posso aquentar você indo embora depois. Fica ai pra eu poder receber uma carta sua. Fica ai mais não demora tempo suficiente pra receber uma carta dizendo que eu morri.
sábado, 14 de novembro de 2009
Os olhos abrem sem vitalidade e a mão digita automaticamente , mais uma vez, no mesmo teclado , no memso quarto das paredes esverdeadas.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Deslia a tv porque...
- um copo com água.
- sete cigarros.
- um trident
- uma barra de ceral ritter
- ventilador ligado
- óculos em cima da mesa
- bolsa no meio do caminho
- telefone ocupado
- pia lotada
- controle de televisão - isolado no meio da rua.
terça-feira, 10 de novembro de 2009
Apagão.
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
O óbvio me violenta
Como é com o soco
Como é também com a pena
Como com o nojo
Como com algemas
Como é também com irmãos
que não se aguentam
Como é com o tiro
Como é quando alguém silencia
e o tempo nisso se esvái
pesando mais e mais
a cada lapso
a cada medo contido
a cada desejo segredado
É óbvio
como o que se faz à pele:
eterno desgastar.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
Eu calei porque...
Rosa, a Estela.
terça-feira, 27 de outubro de 2009
Eu calei porque...
Eu chorei porque...
Rosa, a Estela.
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Eu gritei porque...
domingo, 25 de outubro de 2009
eu calei porque...
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Eu calei porque...
Violenta no MoLa 2009 - Mostra Livre de Artes
21h50m - Pacotão videoarte 3:
Título: Violenta entre quatro paredes
Gênero: videoarte
Duração: 6’07’’
Sinopse: O tema se desdobra na abstração de imagens criadas com o objetivo de refletir sobre sensações interiores causadas pelo estado de violência, do pós.
Exibição do produto A.
http://www.circovoador.com.br/mola2009/
http://mola2009.blogspot.com/
terça-feira, 20 de outubro de 2009
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
crítica sobre a performance: Violenta-entre 4 paredes-segunda etapa-interação dos atores com produto A gerando produto B
Uma violência tão pura, que é capaz de surgir dos atos menos impensáveis. Das manifestações mais sinceras de carinho (abraços afetuosos), dos movimentos mais inusitados (auto-agressão), dos pedidos corriqueiros de silêncio (todo o mundo já ouviu um 'psiiiii' inconveniente).
Uma performance jovem, com atores no auge de seu fôlego, no clímax de seus corpos, que mesmo com toda a sua jovialidade já foram, são e serão, como todos nós, violentados.
Palavras, pedidos, histórias que violentam. Tudo na vida pode nos violentar! E a arte da performance sempre violenta nossa vida cotidiana.
Uma performance em processo, processo de amadurecimento, de endurecimento. As imagens primeiras (produto A), se misturaram violentamente, como não poderia deixar de ser, com a performance viva (formando o que será o produto B). Aqueles corpos jovens - violentados por abraços convulsivos, repetições alucianadas, palavras incisivas, silêncios impostos - num ritmo brutal e atual, acentuado pela ausência de trilha sonora, conseguiram interagir e dialogar com um ritmo brutal, mas virtual das imagens primeiras. Em um diálogo íntimo e espotâneo, atores se violentavam e eram violentados acompanhando e reafirmando um processo pelo qual já haviam passado. Vemos então passado e presente que se encontram, em um tempo puro, no tempo da vida, vida que é pura violência.
A performance se completou no "Meio". O meio da performance foi, na verdade, o final dela, pois este "Meio" violentou e matou a própria perfomance. A partir daí, deste ponto no meio do caminho, o ritmo que antes era convulsivo, violento, o tempo que antes era puro passou a ser sincrônico, progessivo. A perfomance que era dura, seca e impessoal se transformou em um teatro cômico e blando, quase um stand-up aonde os atores se individualizavam e competiam pela atenção do público, que já possuiam. Neste momento fui violentada. Me sentei no chão para não ver o fim cômico, quando poderia ser trágico, da performance que me violentava e me dava prazer.
Mas assim como a vida, a arte também nos violenta. O choque foi tamanho, que me levou a escrever esta breve crítica, pois como diria o grande poeta, que sofreu toda uma vida como "tísico profissional": sem choque não existe necessidade nenhuma de crítica. O choque da interrupção abrupta da performance, foi violento como um coito interrompido, como o último pedaço de papel higiênico do rolo, como a última carta que sempre desmorona o castelo. Mesmo violentada, espero pelo produto final deste trabalho em progesso, o momento em que a performance se juntará ao tempo virtual do vídeo, sendo atualizada no tempo real de uma instalação. Esperamos ansiosos por isso, pois já que não podemos evitar a violência que a vida e a arte nos impõe, tentemos, ao menos, obter algum prazer neste fluxo de sofrimento. Masoquismo, talvez? Por quê não?"
Marce.
sábado, 17 de outubro de 2009
Eu chorei porque ...
O nosso casamento me violenta ..
Eu sobrei porque ..
Eu sobrei porque ...
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
porque talvez seja só uma tentativa. Vou te ligar.
Eu sobrei porque...
Eu sobrei porque...
Nosso casamento me violenta...
sexta-feira, 9 de outubro de 2009
Qual é a embriaguez de VIOLENTA?
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8.
Da Psicologia do Artista. Para que haja a arte, para que haja uma ação e uma visualização estéticas é incontornável uma precondição fisiológica: a embriaguez. A embriaguez precisa ter elevado primeiramente a excitabilidade de toda a máquina: senão não se chega à arte. Todos os modos mais diversamente condicionados da embriaguez ainda possuem a força para isso: antes de tudo, a embriaguez da excitação sexual, a mais antiga e originária forma da embriaguez. Da mesma forma, a embriaguez que nasce como conseqüência de todo grande empenho do desejo, de toda e qualquer afeto intenso; a embriaguez da festa, do combate, dos atos de bravura, da vitória, de todo e qualquer movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certas influências metereológicas, por exemplo a embriaguez primaveril; ou sob a influência dos narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade acumulada e dilatada. - O essencial na embriaguez é o sentimento de elevação da força e de plenitude. A partir deste sentimento nos entregamos às coisas, as obrigamos a nos tornar, as violentamos. – Denomina-se esse evento como uma idealização. Desprendamo-nos aqui de um preconceito: o idealizar não consiste, como geralmente se pensa, em uma subtração e uma dedução disto que é pequeno e secundário. O que é decisivo é muito mais uma monstruosa exaltação dos traços principais, de modo que os outros traços pertinentes se dissipam.
9.
Neste estado, tudo se enriquece a partir de sua própria plenitude: o que se vê, o que se quer, se vê dilatado, cerrado, forte, sobrecarregado com a força. O homem que se encontra nesse estado transforma as coisas até elas refletirem sua potência: até elas serem o reflexo de sua perfeição. Este ter de transformar em algo perfeito é - arte. Tudo mesmo o que ele não é, vem-a-ser apesar disto para ele prazer em si; na arte, o homem goza de si mesmo enquanto perfeição. [...]
"
apropriação de...
antes de ontem deu discussão na mesa do jantar. de novo. acho que a gente entendeu, não sei como, que a mesa de jantar é lugar de discussão e não de jantar. acho que ninguém comeu nada. a comida também estava fria. além disso, tinha uma cadeira virada. a outra sentou no chão, disse não vou levantar não fui eu quem deixou ela no chão. a outra, ainda mais indignada, começou a mexer nos talheres como se pudesse descontar neles o seu desespero. eu não falei nada, acho que nem estava na sala, porque não fui eu que coloquei a cadeira no chão, virada, impedida de ser cadeira. a mesa estava posta, mas quem foi que colocou a mesa, quer dizer, a cadeira no chão? quem foi que deixou ela virada? assim não dava para ter jantar. a gente se olhou, meio pausadamente. era como se olhássemos cada um para um parente morto sentado à mesa e depois, apenas depois, tivéssemos a medida de que sim, estávamos sozinhos. quer dizer, que sim, éramos apenas os três. depois disso a outra voltou a se emburrar. achei que fosse por causa da comida fria, mas não era culpa de ninguém. a comida esfriou porque não amamos o pão nosso de cada dia, por isso. não era culpa de ninguém. mas confesso. dava um silêncio entre a gente (entre os parentes mortos sentados à mesa) e todos voltávamos à questão. pode falar foi você? não fui eu você sabe que não fui eu qual é o problema em não sabermos quem foi? o peso dos parentes mortos fez todo sentido. nos olhamos. entre nós os avós todos os primos. tudo falecido na hora do jantar ganhava vida. talvez por causa disso a comida fria. talvez por causa disso os talheres intocados. talher de ferro é mais frio. talvez por causa disso permaneceram limpos, todos os guardanapos.
Nosso casamento me violenta...
Trecho da carta: Do fundo do coração, ou Love, Love, Love
Caio Fernando Abreu
Poemas e prosas da pasta rosa de Ana C.
"Discussão na mesa do jantar. Assunto, o vazamento que molhou o corredor. Mamãe acha que o papai é um mole.Papai pergunta por que ela mesma não vai tratar do assunto. Não dizem tudo o que pensam. Mamãe mandou atapetar quando papai viajava, surpresa. Há silêncio, curiosidade de saber o desenlace. Mamãe diz que projetou o filme para mais duas turmas. Papai diz que queria tanto tocar órgão, ensaia, dedilha no ar. Pergunta de mamãe se ele já terminou o trabalho da Bloch? Ânimos serenados pela tática de mútuos redesvios. Depois do jantar os homens descolam o tapete com ferramentas. Todos participam do alagamento. Escrevo in loco, sem literatura. Hoje li nos avulsos de Machado: regras para andar de bonds. Muita atenção a escarros, cuspes, catarros e perdigotos."
- da categoria dos PRONTOS, mas regeitados
Ana Cristina Cesar
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
Papel higiênico
Eu chorei porque...
Chorei porque nesse dia eu entendi o que era o vazio. Porque nesse dia eu percebi que carregava ele dentro, que era meu, era meu corpo doendo incontido. Porque perder alguém é ter que se perder também. Vai-se um pouco em cada partida. Por isso hoje eu odeio tanto ter que dar adeus, mas eu dissimulo, sacudo as mãos diferente, para não ser efetivamente um tchau, uma despedida. Porque eu tive que lembrar de tudo que foi último. De tudo nosso que havia sido a última vez. O último abraço, as últimas palavras, os últimos tempos, os últimos sonhos compartilhados, as últimas coisas que foram tão triviais, porque não sabiam - ainda - que seriam algum fim.
Chorei porque morrendo você eu vi você indo e eu indo atrás, por extensão, por ser tão próximo, por sermos tão jovens, por sermos mais que amigos, chorei porque não encontrei forças para te segurar e dizer FICA! Chorei porque te vi inúmeras outras vezes, passando por mim em trocentas esquinas. Mas não, chorei porque depois que te vi não te vi. Chorei porque pedi aparece, pedi em silêncio, dá um sinal, e nada. Chorei porque me convenci que você estava aqui, perto, me vendo, me guiando, mas porque eu fora obrigado a não te ver, não te tocar. Chorei porque naquele dia entrei na farmácia e fui mexer nos cremes para cabelo. E achei o seu. E fechei os olhos e cherei seu cheiro. E chorei porque abri os olhos e vi que agora ele podia ser de qualquer um, menos de você outra vez.
Chorei porque durante muito tempo você me foi choro. Como se quisessem (quem?) compensar a alegria que foi viver você, que foi estar junto, viver junto, juntos crescer. Poxa, chorei como agora vou me dissipando, porque eu não queria que fosse assim. Chorei pelo desastre, pelo susto, pelo baque, pelas coisas que eu teimo em dizer poderíamos ter consertado, ah... Chorei porque sequei. Chorei porque vi fotos. E ontem vi de novo. E chorei porque a dor não é só minha. E quem talvez leia isso aqui vai pensar que você é outro alguém que não você. E ao saber disso eu vou chorar, dentro, em silêncio, porque vou perceber como o mundo é feito das mesmas dores, e cores, tão rubro, seus cabelos, que nunca mais vi outra vez...
Devia ter roubado um pedaço seu. Para ter trazido junto comigo, sabe? Devia ter gravado a sua voz, para colocar nesta noite e dormir sonhando, repetindo, sonhando, repetindo... Devia tanta coisa que não sei se devo. E se hoje eu chorei é porque o passado ainda está inteiro. Quase todo, faltando você. Mas está aqui, me fazendo saber por tudo aquilo que passei. O que fui. Devia ter te roubado. Te algemado e inventado tudo de novo. Chorei porque quis me culpar para ver se nisso algo se consertaria, mas não. Porque você deixou uma carta. E eu estou nela. Chorei porque você me pediu desculpas, mas não durou mais tempo sequer para que eu te desculpasse.
Mas eu o fiz, certo? Eu estava lá até o último segundinho. Até ver a terra cobrindo você, você virando túmulo. E chorei, como outras vezes, e chorei como se quisesse dizer de outra forma como dói tudo isso como amamos e como amar por vezes é precipício... Eu chorei. Porque descobri que quanto mais se ama mais se pede para chorar. Eu choro. Porque eu ainda não aprendi a não amar. E vou chorar. Por você, por mim e por todos os outros que inda vamos afagar...