Apropriação de Breve ilustração.
Quando ele entrou na sala, as duas estavam costurando. Ele queria atenção, elas queriam silêncio. Lá em casa, quando elas resolvem costurar, só pode haver na sala o barulho da costura. Nem grilo ousa grilar. Ninguém fala. A televisão cala a boca. Quando ele entrei na sala, elas franziram a testa. Franziram a linha preta. Ele percebi. Mas queria atenção, então adentrou até o centro da sala. E foi quando elas pararam de pisar no pedal da máquina. E passaram a pisoteá-lo.
Que ele queria entender, queria conversar, estava disposto a sair perdendo, mas queria ao menos tentar ali compreender, o porquê da mudança dos móveis. Mudamos os móveis porque mudar é necessário. Ah, muito bom, isso explica muita coisa. Ele disse sem provocar mas já provocando. Mudamos porque mudar é necessário e quem determina a necessidade, ele perguntei. É o estômago, ele (o estômago) respondeu.
A mesa estava posta desde cedo. Posta no canto da sala. O queijo destampado. As cadeiras de madeira sem os estofados (que estavam todos ao mesmo tempo sendo costurados). Cadeira sem estofado vira cadeira-impraticável. Ninguém tomou café almoçou comeu nada. Enquanto as cadeiras tinham seus estofados costurados, ninguém comeu nada.
Ele fica chato quando está com fome. Elas deveriam saber. Já deveriam saber o passado das mamadeiras atrasadas. Mas dentro de casa às vezes alguma coisa precisa acontecer para lembrarmos quantos somos, como fomos, o que fazemos, porque existimos, porque ela chorava ontem dentro do banheiro. A pia ligada escorrendo uma lágrima maior, infinita. A pia ligada era capaz de sobrepor a outra, aquele rio sem fim tão maior que de dentro dela ia se perder no chão. Por onde eu passei e gritei depois, Porra, deixou água cair no chão. Você é porca!
Ela era triste. Só isso.
Não era porca. Era triste. E ser triste dá essa sensação de sujeira. Porque pior que ser triste é ser triste sozinho, em escondido. Tem que guardar no rosto o choro chorado. Esconder no rosto o choro escorrido.
Quando eu tentei pegar um estofo para a cadeira. Ela costurou minha mão na sua e disse, Espera! Mas eu já estava esperando desde o dia do meu nascimento por alguma coisa. Ela me empurrou contra a parede, eu quase apaguei com as costas a luz fria da sala. Ela puxou a linha preta, engrossou a voz e disse, Me ajuda! Eu não entendi, não sabia se era para costurar, se era para comprar mais linha. Na dúvida, optei por ficar encostado na parede e esperar a almofada ser cosida.
Enquanto isso, dentro, o estômago temia fazer barulho demais. Mais barulho do que as máquinas costuravam. Mais barulho do que a dor de existir. Naquele instante. Naquela nossa casa. Mais uma vez. Sempre até a morte.
Um comentário:
costuraramm a minha/sua boca. nos mandaram calar e nos proibiram de comer. era preciso esperar as almofadas ficarem prontas. era preciso.
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