Eu sobrei porque não sei escrever. Sobrei exatamente por achar bonito ver desenhos ao invés de letras. Sobrei porque estava sozinha naquela enfermaria com uma tábua na minha frente e os olhos vazios de significados. Sobrei porque quando olharam nos meus olhos livres de duplo sentido logo entenderam: eu sou analfabeta. Eu sobrei porque meus parentes moram longe e fiquei sozinha na entrada daquele prédio velho e feio. Sobrei porque quando perguntei como chegar onde deveria chegar me disseram que era só acompanhar as placas. Mas eu não sei ler. Eu sobrei porque na hora de assinar a minha sentença de liberdade eu não sabia. Eu não sei assinar meu nome. Eu sobrei no meio de tantas mulheres resolvendo sozinhas seus problemas e eu tendo que esperar alguém em quem confiar, um carimbo e meus dedos que não seguram canetas. Eu sobrei quando todas as outras liam livros e faziam palavras cruzadas, e eu, olhava pros círculos sujos no teto, se desenhando, com certeza, como as letras que nem ao menos sei o nome. Eu sobrei quando não pude ler o que estava escrito na tatuagem da filha da minha vizinha de enfermaria. Uns desenhos bonitos, umas flores que não sei o nome e aquelas letras que de desenho eram mais bonitas que flores. Eu não li o nome que estava em cima do meu leito, antes de trocarem os lençóis, nem ao menos posso saber de quem foi o suor que sujou esse colchão de plástico. Não li meu laudo, não li meus pedidos de exame, me poupei de me esforçar pra ler a letra do médico, que já me disseram que é horrível. Eu não sei se são realmente feias. Eu sobrei, mas li perfeitamente nos olhos da médica o pavor pelo que estava escrito nos papéis que eu trazia comigo. Eu sobrei, mas vivi dias de tranquilidade sem saber o que se passava ali, no meio daqueles carimbos, números e letras. Eu sobrei, mas vi no meu raio-x aquela massa estranha que passei a chamar de amor. Tinha formato de coração. Não sei se com letras dentro, mas aquilo é meu coração. Eu sobrei, mas sei ler com calma os lábios tremendo das pessoas que me olham com pena. Eu sobrei porque não sei ler papéis, mas olhos, bocas, narizes, pernas, mãos e veias, essas coisas sim, eu sei ler. Eu sobrei porque fiquei sozinha esperando minha vez, como já sobrei esperando esse tal carimbo outras vezes. Levo no dedão a marca negra dessa incompreensão de garranchos, digitações e cartas.
Sempre sobrei e sobro agora, mais que nunca, porque não fui eu quem escreveu essas frases.
Rosa, a Estela.
http://rosaestela.wordpress.com/
Sempre sobrei e sobro agora, mais que nunca, porque não fui eu quem escreveu essas frases.
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